Cadeira Frouxa

Olhava-se ao espelho, enquanto sacudia os pêlos do casaco preto. Saia preta pelo joelho e casaco a combinar. Naquele dia eram proibidos decotes, cores ou estampados. Apenas preto com laivos de branco.
Sem alegria, sem sorrisos.
Ajeitou os caracóis de maneira a disfarçar a cicatriz. Sem sorrisos. Sem alegria.
Olhou a mancha do soalho. Devia esfregá-la, mas ainda não o fizera. Perdera horas a olhá-la. Em breve limparia o soalho. Esfregaria com força e com lixívia.

Levou a cadeira para perto da janela. Virada para o vale, como ele fazia questão de a relembrar. Agora a cadeira estava vazia e frouxa. Não havia berros imperativos, nem alguidares de água e vinagre para dissolver nódoas de sangue. Não sorria. Mas apenas por fora.

O Alto de São João estava cheio, parecia dia de mercado. O preto das roupas contrastava com o branco das lápides e o colorido das flores destoava.
Aproximou-se do mármore, sem limpar as folhas secas. Pousou o que estava no último saco que ele lhe entregara.
Virou costas com promessa de não voltar. Para trás ficou a pedra fria, enfeitada com a planta ressequida. A do pedido de desculpa que nunca recebera.

E por fim sorriu.

1 comentário:

Piriquita disse...

O importante é não perder a capacidade de Sorrir...e o "resto" vem por acréscimo!
Nota: o resto é mesmo a Felicidade!!!
:)