Falta pouco. Mais um pouco de semântica e tenho direito ao meu final feliz.
Sem metáforas, tropos ou antíteses.
E assim vou lambendo o dedo, enquanto viro mais uma folha ressequida.
Ultimamente andava sempre com a cabeça no ar. Tanto ansiava para o tempo passar depressa, como precisava de mais horas por dia.
Faltavam 2 meses. E 2 meses pareciam tanto. 60 dias de agonia, para agonizar mais ainda.
Mas o ambiente de ontem descambara. As emoções não se contiveram. O fel saíra, as verdades tinham sido ditas, por mais que lhe tivesse custado dizer e à outra parte ouvir. Se calhar porque havia demasiada confiança.
Se calhar porque tinha dado demasiada.
Mas não era o fel que a incomodava. Estava confusa. Faltava perceber o que tinha ficado por esclarecer. Mas dizer que não tinha percebido era atípico. Esperavam sempre que compreendesse as coisas à primeira. E o muro não permitia questões óbvias.
Seria melhor afastar-se nos próximos dias. Como já estava habituada a fazer.
Certamente que tudo ficaria composto.
Mas assim ia desperdiçar dias. E 1 dia para quem já só tem 2 meses é muito! E quantos dias seriam precisos até sentir a sua falta?
Afasta-te um bocadinho. Mais um bocado, por favor.
Hoje preciso de espaço. De tempo.
O ar do campo não chega. A estima não respira. Suspira.
Só hoje.
Preciso de espaço.
Não perguntes. Mas só porque não quero dizer. Só hoje.
Silêncio e lágrimas. É disto que preciso.
Não me apetece ser.
Não me apetece viver.
Mas não te preocupes, é só por hoje.
Revivo as angústias do último ano.
Revejo as caras de quem já não aparece.
Revisito os lugares que nunca fui.
Dói.
Mais 365 dias que passaram. E foram tão diferentes dos outros 365!
Melhores, sem dúvida.
Mas hoje não parecem. Só hoje.
Amanhã, peço-te que me abraces novamente. Amanhã, nos 366, já tudo passou.
Escondes-te do mundo porque tem de ser. Por medo ou desconfiança. Pensas que todos te querem mal, mesmo antes de dares uma tentativa ao bom senso.
O afastamento é sempre mais fácil, o sorriso que abafa o desconforto.
Simpático, prestável e bem parecido. É assim que te apresentas ao mundo que não te conhece. Mas quem já viu o que está por detrás da armadura, consegue imaginar o sufoco que interiorizas.
-“É a minha vida. Faço o que quero e ninguém tem o direito de apregoar”
Esta individualidade é uma constante. Presente até nos momentos partilha. Mas sabes que, às vezes, é preciso coragem para partilhar.
Não tens uma vida só tua. A nossa vida incorpora-se com a vida dos outros. Alimenta-se das experiências que temos em uníssono. Dos saltos que damos. Até dos afastamentos de que sentimos necessidade.
A vida prega-nos partidas cruéis, eu sei. Que nos endurecem e amadurecem.
Espero que, um dia, consigas chegar ao estado de transparência com o teu “alguém especial”. Quando o conseguires, saberás que todos os quases se transformaram em tudos.
Detesto amores platónicos. Os sentimentos fortes que não deviam ser reais.
Detesto aquelas alturas em que não conseguimos evitar rasgar o sorriso, quando seria de esperar um choro desenfreado. Sim! Porque se amamos quem não podemos ter, porque raio estamos felizes
Amores desmesurados num silêncio de ouro.
Bem que diz o povo “Bom é saber calar até ser tempo de falar”. E assim ficamos. Calados e desamados. Sempre a contar que seja hoje o dia em que as palavras podem sair. Finalmente.
Seguimo-nos pelos provérbios que mais se ajustam, como “o tempo tudo cura”, “No amor, quem foge é o vencedor”, confiantes na sabedoria popular. Mas a angústia permanece. Os suspiros não fogem. Acordamos e suspiramos, vestimo-nos e suspiramos, comemos e suspiramos. Será que tanta oxigenação não afecta o cérebro lesionado de desamores…
Ai! Destesto amores platónicos.Desses amores escondidos em que só um sofre. Só um sabe. Só um ama.
Amores de uma pessoa só. Condenado. Aliás, condenadíssimo.
Ao acordar sabia sempre quando era Sábado. Sabia-o pelo cheiro a torradas e pelo barulho que velha torradeira fazia quando lhe abriam as tampas laterais.Espreguiçava-se sempre muito lentamente. Hábito que foi perdendo com os anos. Com as rugas vieram as pressas.
No tempo em que o mundo girava mais devagar adorava ver as suas cortinas, com os vários tons de azul reflectidos no tecto pelos raios de sol matinais. Sentir o edredão de penas de pato, que a confortava nas noites mais frias. Contar os bigodes do gato que dormia na cadeira ao lado da cama.
Suspirou e sorriu.
Ao descer as escadas o cenário era sempre idêntico. A avó sentada na cadeira com a perna torta, a molhar o pão do dia anterior no café com leite. A mãe a insistir – “Come este que está fresquinho. Acabámos de o trazer.”Mas a avó tinha as suas manias, comia sempre o pão ressequido – “Para não se estragar.”
A cozinha branca, guarnecida de um lambrim com pequenos tachos e panelas em tons amarelados. Onde aos sábados reinava sempre o caos pela manhã. Nas 4 assoalhadas da casa, aquela era sempre a mais movimentada. Ali a vida tinha pitadas de emoções com cheiro a especiarias.
Hoje, que olha para trás e relembra momentos, sabe que foi naquela cozinha que cresceu. Onde se escondiam lições valiosas e temperadas. Aprendeu que o tempo não pára. Cresceu enquanto os lambrins saíam de moda e o mundo girava mais depressa.
Suspirou.
Passou a mão na parede, sentindo as saliências dos antes amarelados tachos e panelas. Alguns negócios são pecados, pensou. Mas já não lhe era permitido voltar atrás.
Fechou a porta e rodou a chave dentada uma última vez. Entregou-a à vendedora e, no caminho para o carro, suspirou-se em lágrimas.
Não vos consigo sentir. Não é falta de sensibilidade, apenas não vos consigo sentir. Tocar, cheirar, acariciar. Não consigo.
Existo paralelamente à vossa vida. Não estou morto, apenas não vivo humanamente.
Vivo nos pensamentos, nas bibliotecas e a cada pôr-do-sol encontramo-nos na praia. Nós, os da minha espécie. Adoramos ouvir o sol, os acordes ao despedir-se de mais um dia.
No meu trabalho guio quem vos deixa. Na morte, essa palavra que, para vocês, é fria. Mas nós não sentimos o frio. Na realidade a morte é só o início de outra vida. Uma vida como a minha. Não humana.
Enquanto vos guio na nova estrada, atrevo-me sempre a perguntar o que mais gostaram. Aponto no meu livro cheio de coisas boas.
Foi numa dessas situações que te encontrei. Enquanto esperava que uma vida se desvanecesse do vosso lado e começasse do meu. Olhaste-me nos olhos e contrariaste-me. Parecia que me conseguias ver. Como se fosse possível tocares-me. Como se pudesses alterar destinos.
O destino manteve-se. E eu não me consegui afastar.
Deixei-te ver-me, conhecer-me. Mas nunca tocar-me. Só porque não vos consigo sentir.
Quando percebeste que não existia dor para mim, continuaste a não acreditar em anjos.
Não acreditavas em anjos, mas apaixonaste-te por um.
Ele, que não deixa nada ao acaso, deu-nos algo em comum – a vontade própria. O livre arbítrio. A mudança.
E eu queria mudar. Por ti atirei-me. Caí. Acordei humano.
Fomos felizes. Por uma noite sentimo-nos.
Absorvi cada toque, cada cheiro, todas as emoções. Fomos felizes.
Demasiado depressa aprendi a chorar. Finalmente percebi porque as lágrimas caíam.Olhaste para mim uma última vez. Acariciaste-me uma última vez.
Quando te perguntaram o que tinhas gostado mais, disseste o meu nome – Seth.
Perguntam-me se valeu a pena. Apenas por um toque teu. Por um cheiro teu apenas.
Sim, valeu.
Há pouco tempo comecei a minha caminhada. Parei. Tive medo da folha em branco. Medo de não conseguir percorrer uma estrada pouco acidentada.
Estou a pôr a primeira e a fazer o ponto de situação.
Já estou em movimento. Porque as vidas que são rosa no verde não estagnam. Avançam. Já poucos se conformam com o preto no branco. Espero eu!
Ando a ver as pedras no meu caminho e não as apanho. Dou-lhes pontapés. Assim fico sem material e o meu castelo não passa de pedras soltas.
Que este texto sirva de argamassa. As mangas estão arregaçadas e é Verão. Já passei a primeira lomba. A auto-estrada avizinha-se. Buzinemos em uníssono.
Sempre quis ter um gato. Desde que ouvi dizer que são os animais mais independentes que se pode ter. Queria um gato. Assim crescia eu e o gato, independentes um do outro. Nunca o tive. A minha mãe não deixou.
Descontente, dei as boas vindas ao Tico e ao Teco, os peixinhos dourados que substituíam o meu gato independente. Não gostei, não podia dar-lhes festinhas. Só tinha piada quando vinham buscar a comida. Quando podíamos contemplar o interior das bocas. E eu dava comida. E dava mais. E continuava a dar.Morreram passados 2 dias.
Mas também não era meus. Não os queria. Queria um gato.
Mas não me importei. Não era minha. Eu queria um gato.
A segunda atirou-se do aquário (mistério que ainda persiste), logo no dia em que eu o deixei no parapeito para apanhar sol. Se vivêssemos no rés do chão, tínhamos evitado a poça verde no quintal da vizinha. Aliás, se fosse um gato tinha caído direito no chão, sem mazelas. Amuei quando tive de ir limpar os resíduos viscosos. Ela nem era minha.
A terceira hibernou durante ano e meio e a mãe decidiu atirá-la pela pia. Ainda hoje acho que havia uma hipótese de ser apenas um longo período de hibernação. Mas também não disse nada. Não me interessava.
- Quando tiveres a tua casa, escolhes o animal que quiseres. – diziam-me constantemente. E assim esperei. Passei da infância para a puberdade. Entrei no curso técnico para assistente de consultórios dentários. E comecei a trabalhar com a Dra. Jossara Violão.
Estava contente. Parecia ter escolhido a profissão certa. No início escolhi o curso por me parecer um bom sítio para trabalhar. Onde as pessoas pouco podiam reclamar, por estarem sempre de boca aberta. E até se ganhava bem.
Mas agora transportava-me um pouco à minha infância. Sorria por debaixo da máscara, sempre que me lembrava do Tico e do Teco. E tinha de combater a vontade de atirar comida para dentro das bocas dos pacientes.
Fui poupando e finalmente comprei uma casa só para mim. Era minha. Agora sim queria e tinha escolha própria. Já ninguém me proibia de nada. Fui ao shopping e comprei um gato. Era preto, com olhos verdes e um sorriso nos lábios. Era meu. E não importava se era apenas uma imagem estampada num porta-chaves. Era um gato e era independente. Tal como eu!
O creme hidratava o ar do quarto com cheiro a baunilha.Ana Rosa esticava delicadamente as meias de rede. Pretas com brilhantes. De perna erguida, sentada na cama recordava – os faróis dos clientes que acendiam as lantejoulas e o desejo. No fundo até gostava da atenção.
As suas pernas esguias faziam sucesso todas as noites.Entretia-se a escolher o batom que melhor combinava com a cor do seu vestido
“You don’t have to wear that dress tonight”
Ele não conseguia compreender. Uma mulher tem de fazer pela vida. Não conseguia aceitar a ideia de viver às custas de um homem. E arranjar um emprego medíocre a ganhar pouco, não era para ela. Era ambiciosa. Gostava de ir às compras na Avenida da Liberdade. Dos produtos de beleza. No fundo até gostava da atenção.
Dos olhares que a seguiam.
“So put away your makeup”
A sua mãe sempre lhe tinha dito – o que é bom é para se ver – e ela cumpria. Todas a noites mostrava o que tinha de melhor. E até gostava da atenção.
“I won't share you with another boy”
Mas para ele não. Não a queria partilhar. Logo ela, que era de ninguém.
Vinha com a conversa do Amor. – Amor? O que é isso? – Ana Rosa acedia-lhe ao pedido. Olhava-o nos olhos – no fundo, no fundinho – mas só via a auréola preta. Não via o Amor, nem Alma. Só preto. E o olhar dele seguia-a. Ela gostava, especialmente da atenção.
"You don't have to put on the red light”
Calçava as botas de salto. Estava pronta para mais uma noite de trabalho. Ou diversão. Tudo dependia da perspectiva. Já o tentara explicar-lhe, mas ele não ouvia. Não queria saber.
“You don't have to sell you body to the night”
Ana Rosa no fundo só gostava da atenção.
Assim que chegava ao carro, verificava sempre o bolso interior do casaco. O alto disforme confirmava. O anel estava lá. A rotina disfarçada permanecia. A quase aliança. A quase esperança. Os quase poemas inspirados.
Nesse dia, a neve na estrada rotineira obrigou-o a um rumo diferente. Acompanhava o rio. Parou o carro. Estava na beira da ponte. Não conseguia perceber porquê. Logo ele, que tinha vertigens. Olhou para o fluir da água e desejou fazer parte daquela força. Encolheu-se no casaco, mas a alma não aqueceu.
Inesperadamente o seu pé escorregou. Agarrou-se com toda a força à estrutura metálica. No peito sentia um bater desenfreado. Afinal ainda não estava pronto.
Começou como um esgar nos lábios e depressa se tornou num riso nervoso e contido. Riu alto. Riu muito. Há tanto tempo que não ria. Soube-lhe bem. O quase não era suficiente. Deu um berro. Deu outro. Berrou até ficar sem voz. As lágrimas que esperavam há muito, saíram. Os olhos cansados tinham, finalmente, paz e liberdade.
Levou a mão ao bolso perto do coração. E atirou o último quase ao rio.
Desde os 2 anos que a mãe lhe falava do bem que o ar da Serra fazia. Naquelas noites de Verão, nas histórias para dormir, havia sempre uma referência ao vento .
- Quando os 3 porquinhos pensavam que não havia nada que os salvasse do lobo mau, apareceu a fada madrinha. A fada chamou a força do vento da Serra, e o lobo mau voou.Amélia recordava essas noites. Do luar que passava pelas persianas amarelas semi cerradas. Em especial da brisa que corria, com cheiro a Verão.
Amanhã era o seu aniversário. A mãe ia levá-la à Serra . No fim de semana passado tinham ido aquela loja da cidade, onde se vendiam reliquias e velharias. Amélia tinha escolhido o frasco mais bonito da loja. Cabia na palma da mão. Transparente e com pequenas flores verdes e azuis.
Era a prenda que pedira. Ir a Serra e apanhar o vento.
Assim que saiu do carro, respirou fundo. Encheu os pulmões. Renovou os sonhos. Abriu o frasco e fechou-o o mais rápido que conseguiu.Tinha conseguido.
Com 5 anos acabados de fazer e era dona de um pedaço de vento. Tinha o mundo todo por conquistar e isto era apenas o início.
Pegou na caneta cor-de-rosa com brilhantes e escreveu no frasco – Vento da Serra – pôs na mesinha de cabeceira e ficou a olhar com um sorriso. Nessa noite adormeceu e sonhou com a festa dos 3 porquinhos e viu o lobo mau de paraquedas.
Morro em doses suaves. Queixo-me e não mudo. Lentamente caio e o abismo aproxima-se. Vou viver e mudar. Deixar de lado os pontos nos is. Vou começar a ver tudo rosa no verde e não preto no branco. Começo hoje.
Eu mudo, tu mudas, eles mudam,
Nós não mudamos.
Muda o mundo, muda tudo,
Nós não mudamos.
Passam dias e anos.
Começamos a enrugar,
Não mudamos.
Acordamos, adormecemos.
Entrelaçamos as mãos.
Permanecem as rotinas.
Suspiramos e pensamos:
"Até quando?"