Folhas

Estou tão farta de virar páginas sem as ler. De folhear este livro. De ler este capítulo que já devia ter acabado.
Falta pouco. Mais um pouco de semântica e tenho direito ao meu final feliz.
Sem metáforas, tropos ou antíteses.
E assim vou lambendo o dedo, enquanto viro mais uma folha ressequida.

Facebook

Acorda com o peso de mais um dia de trabalho. Despacha-se nas rotinas, para não se perder no trânsito, ainda com um olho meio fechado. Pára no caminho, como habitualmente, e compra o pão de 20 cêntimos:

- Hoje são 2, se faz favor.

Enquanto estaciona, organiza mentalmente o trabalho diário. Mas antes de começar, vê o mail e o facebook. Indispensável!
Passa entre mudanças de foto de perfil, jogos nas quintas e vídeos de músicas. Percorre os 200 e poucos amigos. Amigos?!? Hipocrisia dos tempos modernos. Na realidade, alguns nem os reconheceria.


Vê as fotos dos momentos felizes. Aquelas que causaram burburinho e desconfiança. As da inveja. E sorri. O primeiro sorriso do dia.

Ridícula, a inveja que foi sentida. Como é possível que umas quantas fotos, com sorrisos abertos cause esse tipo de emoções. Nem sequer sabem que, naquele dia, tinham acordado de costas voltadas. Que o sorriso apenas se formara para a foto em questão. Mas o mundo é assim. Cheio de falsidades. Quem é estúpido é quem acredita em felicidade plena. Essa não existe! E o facebook está cheio de sorrisos falsos. E o mundo está cheio de pessoas falsas. E então? Esse tipo de coisas, todos as sabemos. Certo?


E para que ninguém possa dizer que está amargurada ou que a vida não lhe corre na perfeição, clica no estado e diz – BOM DIA ALEGRIA! :D


Assim mesmo, muitas maiúsculas e sorrisos virtuais. Assim mesmo, como se estivesse Feliz

Fica!

Não quero que vás. Fica por favor. Posso mudar de ideias? Fica.
Não vás porque pode correr mal. Não arrisques porque parece má ideia. Não saias da zona de conforto porque estamos em tempo de crise.

A sério, não vás. Fica por favor.
Só porque vamos ter saudades tuas. E gostamos tanto de ti. Já te dissemos hoje o quanto te amamos?

Fica, amiga, fica. Não voes para a liberdade. Prende-te ao que já conheces. Fica na vida que não gostas. Fica por favor. Senão ainda parece mal dares o passo maior do que a perna.

Fica. Perto dos que te querem bem. Daqueles que sabem o que realmente queres. Dos que te fazem falta.

Tens mesmo de ficar. Senão, quem é que rega as minhas plantas?

Nome Hebraico

Ultimamente andava sempre com a cabeça no ar. Tanto ansiava para o tempo passar depressa, como precisava de mais horas por dia.
Faltavam 2 meses. E 2 meses pareciam tanto. 60 dias de agonia, para agonizar mais ainda.


Será que as pessoas percebiam o quanto custava. Afinal mudar de vida não era tarefa fácil. Só alguns tinham esta oportunidade e a dela estava ali. Mais uma vez lhe era dada a hipótese de conquistar o mundo. O mundo real, não o dos sonhos. O mundo dos adultos, onde um chapéu é um chapéu, e não uma cobra que engole elefantes.

Considerava-se uma pessoa forte. Honesta e justa. De nome hebraico e com feições irrelevantes. Era mulher para confirmar que o seu defeito era o muro com que protegia as suas emoções. As brechas eram pequenas para quem quisesse entrar. Mas estava a melhorar. Os abanões da vida assim o permitiam.

Nos meses que restavam ia aproveitar a vida ao máximo. Ia aos sítios que queria, conviver e absorver tudo. E todas as festas seriam óptimas para criar ambientes que pudesse recordar.

Mas o ambiente de ontem descambara. As emoções não se contiveram. O fel saíra, as verdades tinham sido ditas, por mais que lhe tivesse custado dizer e à outra parte ouvir. Se calhar porque havia demasiada confiança.
Se calhar porque tinha dado demasiada.

Se calhar.

Mas não era o fel que a incomodava. Estava confusa. Faltava perceber o que tinha ficado por esclarecer. Mas dizer que não tinha percebido era atípico. Esperavam sempre que compreendesse as coisas à primeira. E o muro não permitia questões óbvias.

Seria melhor afastar-se nos próximos dias. Como já estava habituada a fazer.
Certamente que tudo ficaria composto.
Mas assim ia desperdiçar dias. E 1 dia para quem já só tem 2 meses é muito! E quantos dias seriam precisos até sentir a sua falta?


Manter-se-ia firme. Aguentaria sozinha. Afinal estes próximos dias iriam ser daqueles que podiam passar depressa.

365

Afasta-te um bocadinho. Mais um bocado, por favor.
Hoje preciso de espaço. De tempo.
O ar do campo não chega. A estima não respira. Suspira.

Só hoje.
Preciso de espaço.
Não perguntes. Mas só porque não quero dizer. Só hoje.
Silêncio e lágrimas. É disto que preciso.

Não me apetece ser.
Não me apetece viver.
Mas não te preocupes, é só por hoje.

Revivo as angústias do último ano.
Revejo as caras de quem já não aparece.
Revisito os lugares que nunca fui.

Dói.

Mais 365 dias que passaram. E foram tão diferentes dos outros 365!
Melhores, sem dúvida.
Mas hoje não parecem. Só hoje.

Amanhã, peço-te que me abraces novamente. Amanhã, nos 366, já tudo passou.


Tua vida

Escondes-te do mundo porque tem de ser. Por medo ou desconfiança. Pensas que todos te querem mal, mesmo antes de dares uma tentativa ao bom senso.

O afastamento é sempre mais fácil, o sorriso que abafa o desconforto.

Simpático, prestável e bem parecido. É assim que te apresentas ao mundo que não te conhece. Mas quem já viu o que está por detrás da armadura, consegue imaginar o sufoco que interiorizas.

-“É a minha vida. Faço o que quero e ninguém tem o direito de apregoar”

Esta individualidade é uma constante. Presente até nos momentos partilha. Mas sabes que, às vezes, é preciso coragem para partilhar.
Não tens uma vida só tua. A nossa vida incorpora-se com a vida dos outros. Alimenta-se das experiências que temos em uníssono. Dos saltos que damos. Até dos afastamentos de que sentimos necessidade.

A vida prega-nos partidas cruéis, eu sei. Que nos endurecem e amadurecem.

Espero que, um dia, consigas chegar ao estado de transparência com o teu “alguém especial”. Quando o conseguires, saberás que todos os quases se transformaram em tudos.


(Des)Amores

Detesto amores platónicos. Os sentimentos fortes que não deviam ser reais.
Detesto aquelas alturas em que não conseguimos evitar rasgar o sorriso, quando seria de esperar um choro desenfreado. Sim! Porque se amamos quem não podemos ter, porque raio estamos felizes

Amores desmesurados num silêncio de ouro.

Bem que diz o povo “Bom é saber calar até ser tempo de falar”. E assim ficamos. Calados e desamados. Sempre a contar que seja hoje o dia em que as palavras podem sair. Finalmente.

Seguimo-nos pelos provérbios que mais se ajustam, como “o tempo tudo cura”, “No amor, quem foge é o vencedor”, confiantes na sabedoria popular. Mas a angústia permanece. Os suspiros não fogem. Acordamos e suspiramos, vestimo-nos e suspiramos, comemos e suspiramos. Será que tanta oxigenação não afecta o cérebro lesionado de desamores…

Ai! Destesto amores platónicos.Desses amores escondidos em que só um sofre. Só um sabe. Só um ama.

Amores de uma pessoa só. Condenado. Aliás, condenadíssimo.


Sapatos Vermelhos

O teu ego inspira-me. A auto-estima que parece transcender as escalas normais. O saber qualificar a própria beleza e ter certezas de ser amado.Gostava de ser assim. De transpirar personalidade. Olhavam para mim e sabiam o que eu queria. Bastaria um olhar de sobrancelha mais repuxada e repudiava qualquer um.
Mas não o sou! Tenho um eu mais contido. Mais simples, talvez.

Quando me inscrevi nas danças de salão foi com a intenção de aproveitar o que faço de melhor. Adoro dançar, tu sabes. Gosto de vestir as saias rodadas, os sapatos vermelhos e brilhantes e rodopiar. Rodopiar até me parares. Quando me encostas ao teu peito puxando-me a omoplata. Os corpos movem-se sintonizados. Nesses momentos os egos misturam-se e quase se tornam num só. Só o cansaço nos pára. Para mim é o delírio. A altura em que me sinto plena.

Mas desististe. Dizes que vais partir para outra, que a dança já pouco te interessa. Agora resta-me dançar com o meu ego. E não me chega!
O meu eu contido também é fraco. Desistiu contigo no final desse dia. Entrei em casa e pousei a mala. Os sapatos vermelhos já não eram bem vindos. Por isso ficaram à porta. Á espera que a neve os absorvesse.

Caixa de Segredos

Silêncio. Shhh! Essas coisas não se dizem! – dizia a minha tia Luz. Sempre que me ouvia falar do que não gostava, mandava-me calar.
- Mas tia, porque não? Não me posso casar com a Rosa porquê?As sobrancelhas arqueavam e eu já sabia que vinha raspanete.
- Já te disse que as meninas casam com meninos. E não se fala mais nisso.

Eu não percebia. A minha mãe sempre me explicara que o Amor é que era importante. E que a base de tudo era a Amizade. E eu não podia casar com a minha melhor amiga! Porquê?
A tia Luz lá me explicava que dizer certas coisas poderia ser mal interpretado. Para me calar, ofereceu-me um conjunto perfumado de papel e caneta. Era azul e tinha borboletas. “Para escreveres o que não deves dizer.”
- A Rosa é a minha melhor amiga e quero ficar com ela para sempre.
- A minha tia é má porque não me explica o que quer dizer mal interpretado.
- O cão da vizinha cheira mal, mas eu gosto muito dele. E deixo-o lamber o meu nariz.
E assim comecei a escrever os meus segredos. Papéis soltos. Papéis sem nexo na caixa de madeira.
- Hoje foi o primeiro dia de escola e a professora é simpática e tem um dente torto.
- Já tenho uma amiga nova, chama-se Mariana. Ela é muito bonita
- Hoje jogámos ao Bate pé e dei o meu primeiro beijinho ao João. As meninas gostam todas muito dele e ficaram com inveja.
- Finalmente cheguei ao 7º ano. Vou começar numa escola nova. Espero conseguir fazer amigos novos.
Papel atrás de papel a minha vida foi crescendo. Os interesses apurando. Os gostos aperfeiçoados. As pontas dos is passaram a bolas redondas. Os L tornaram-se apenas um traço e separei o S do C para passar a cruzar o X.
Apesar de já perceber o que pode ser mal interpretado, há temas que permanecem tabu. Continuo a usar os papéis soltos para contar ao mundo o quanto te amo.
E para aquelas palavras que não se escrevem, só tu podes vê-las nos meus olhos. O brilho que te escapa.
Todos os dias escrevo num papel “ Eu amo a Vanessa”.
Já os contei, são 143 segredos iguais dentro da caixa. O meu maior desejo é, um dia, escrever “ A Vanessa também me ama”.

Cadeira Frouxa

Olhava-se ao espelho, enquanto sacudia os pêlos do casaco preto. Saia preta pelo joelho e casaco a combinar. Naquele dia eram proibidos decotes, cores ou estampados. Apenas preto com laivos de branco.
Sem alegria, sem sorrisos.
Ajeitou os caracóis de maneira a disfarçar a cicatriz. Sem sorrisos. Sem alegria.
Olhou a mancha do soalho. Devia esfregá-la, mas ainda não o fizera. Perdera horas a olhá-la. Em breve limparia o soalho. Esfregaria com força e com lixívia.

Levou a cadeira para perto da janela. Virada para o vale, como ele fazia questão de a relembrar. Agora a cadeira estava vazia e frouxa. Não havia berros imperativos, nem alguidares de água e vinagre para dissolver nódoas de sangue. Não sorria. Mas apenas por fora.

O Alto de São João estava cheio, parecia dia de mercado. O preto das roupas contrastava com o branco das lápides e o colorido das flores destoava.
Aproximou-se do mármore, sem limpar as folhas secas. Pousou o que estava no último saco que ele lhe entregara.
Virou costas com promessa de não voltar. Para trás ficou a pedra fria, enfeitada com a planta ressequida. A do pedido de desculpa que nunca recebera.

E por fim sorriu.

Tuas Mãos


Escorregam-me os teus dedos. Os da foto, pendurada em cima da lareira. Aperto a mão com força. Com muita força. Mas não te consigo agarrar. Já não.
Adoro cada ruga dos teus dedos. De como representam a minha vida.Cada poro conta uma história. Os das tuas mãos.
Ainda sinto o calor do primeiro toque. O tremor ao colocar a aliança. Os trejeitos em forma de fantoche. As rugas e sardas amadurecidas com o passar dos anos.
Juraste estar a meu lado quando fosse a hora. Mas não te consigo agarrar. Já não.
Aproveito os momentos serenos para relembrar a Felicidade. Dizem que no final, a vida nos passa à frente dos olhos. Mas eu prefiro recordar agora, antes que Ela venha.
Passa mais um dia e, agradeço em demasia, os minutos. Cheguei onde o longo prazo não existe. Onde tudo é demasiado curto.
Peço a quem fica que não chore por mim. Que não perca tempo a lamentar a vida que já não será minha.
E sei que me esperarás, como sempre o fizeste.
Saberei que chegou a hora quando sentir as tuas mãos. A abraçarem-me. Quando te conseguir agarrar uma vez mais.

Disfuncionalidades

As horas que passam devagar, mesmo quando os anos não param. O tempo que se esgota, quando os minutos parecem infindáveis. Há alturas da vida em que somos confrontados com as disfuncionalidades do dia a dia.
Enquanto o coração sofre, pelo abandono da esperança, o mundo retrai. E temos de esperar.
Quando sofremos mais do que queríamos e podemos finalmente olhar para trás. Sorrimos ao achar que afinal passou rápido demais.

Mesmo estando perdidos no Deserto do Mundo, encontram-se amigos no mais fino grão de areia.
E é no pôr-do-sol que o dia acaba perto da perfeição.

A Infância da Casa Velha

Ao acordar sabia sempre quando era Sábado. Sabia-o pelo cheiro a torradas e pelo barulho que velha torradeira fazia quando lhe abriam as tampas laterais.Espreguiçava-se sempre muito lentamente. Hábito que foi perdendo com os anos. Com as rugas vieram as pressas.
No tempo em que o mundo girava mais devagar adorava ver as suas cortinas, com os vários tons de azul reflectidos no tecto pelos raios de sol matinais. Sentir o edredão de penas de pato, que a confortava nas noites mais frias. Contar os bigodes do gato que dormia na cadeira ao lado da cama.

Suspirou e sorriu.

Ao descer as escadas o cenário era sempre idêntico. A avó sentada na cadeira com a perna torta, a molhar o pão do dia anterior no café com leite. A mãe a insistir – “Come este que está fresquinho. Acabámos de o trazer.”Mas a avó tinha as suas manias, comia sempre o pão ressequido – “Para não se estragar.”

A cozinha branca, guarnecida de um lambrim com pequenos tachos e panelas em tons amarelados. Onde aos sábados reinava sempre o caos pela manhã. Nas 4 assoalhadas da casa, aquela era sempre a mais movimentada. Ali a vida tinha pitadas de emoções com cheiro a especiarias.

Hoje, que olha para trás e relembra momentos, sabe que foi naquela cozinha que cresceu. Onde se escondiam lições valiosas e temperadas. Aprendeu que o tempo não pára. Cresceu enquanto os lambrins saíam de moda e o mundo girava mais depressa.

Suspirou.

Passou a mão na parede, sentindo as saliências dos antes amarelados tachos e panelas. Alguns negócios são pecados, pensou. Mas já não lhe era permitido voltar atrás.

Fechou a porta e rodou a chave dentada uma última vez. Entregou-a à vendedora e, no caminho para o carro, suspirou-se em lágrimas.


Silêncio

Fecho os olhos. Apoio a cabeça nas mãos. Preciso de silêncio.
O estômago revolve com as emoções. Preciso de calar.
Calar o silêncio.
Levo as mãos aos ouvidos. Silêncio.
Mantenho os olhos fechados e debruço-me nas quinas da vida.
Relembro emoções. Falo com o coração. Choro ou rio, por quases e por tudos.
O cenário mantém-se. Cara branca, olhos cerrados e mãos que evitam sons.
Perfeito.
Agora já só faltas tu.

Cidade dos Anjos

Não vos consigo sentir. Não é falta de sensibilidade, apenas não vos consigo sentir. Tocar, cheirar, acariciar. Não consigo.
Existo paralelamente à vossa vida. Não estou morto, apenas não vivo humanamente.
Vivo nos pensamentos, nas bibliotecas e a cada pôr-do-sol encontramo-nos na praia. Nós, os da minha espécie. Adoramos ouvir o sol, os acordes ao despedir-se de mais um dia.

No meu trabalho guio quem vos deixa. Na morte, essa palavra que, para vocês, é fria. Mas nós não sentimos o frio. Na realidade a morte é só o início de outra vida. Uma vida como a minha. Não humana.

Enquanto vos guio na nova estrada, atrevo-me sempre a perguntar o que mais gostaram. Aponto no meu livro cheio de coisas boas.

Foi numa dessas situações que te encontrei. Enquanto esperava que uma vida se desvanecesse do vosso lado e começasse do meu. Olhaste-me nos olhos e contrariaste-me. Parecia que me conseguias ver. Como se fosse possível tocares-me. Como se pudesses alterar destinos.

O destino manteve-se. E eu não me consegui afastar.

Deixei-te ver-me, conhecer-me. Mas nunca tocar-me. Só porque não vos consigo sentir.
Quando percebeste que não existia dor para mim, continuaste a não acreditar em anjos.

Não acreditavas em anjos, mas apaixonaste-te por um.

Ele, que não deixa nada ao acaso, deu-nos algo em comum – a vontade própria. O livre arbítrio. A mudança.
E eu queria mudar. Por ti atirei-me. Caí. Acordei humano.

Fomos felizes. Por uma noite sentimo-nos.
Absorvi cada toque, cada cheiro, todas as emoções. Fomos felizes.

Demasiado depressa aprendi a chorar. Finalmente percebi porque as lágrimas caíam.Olhaste para mim uma última vez. Acariciaste-me uma última vez.

Quando te perguntaram o que tinhas gostado mais, disseste o meu nome – Seth.

Perguntam-me se valeu a pena. Apenas por um toque teu. Por um cheiro teu apenas.

Sim, valeu.


Caminhos Alternativos

Há pouco tempo comecei a minha caminhada. Parei. Tive medo da folha em branco. Medo de não conseguir percorrer uma estrada pouco acidentada.

Estou a pôr a primeira e a fazer o ponto de situação.

Já estou em movimento. Porque as vidas que são rosa no verde não estagnam. Avançam. Já poucos se conformam com o preto no branco. Espero eu!

Ando a ver as pedras no meu caminho e não as apanho. Dou-lhes pontapés. Assim fico sem material e o meu castelo não passa de pedras soltas.

Que este texto sirva de argamassa. As mangas estão arregaçadas e é Verão. Já passei a primeira lomba. A auto-estrada avizinha-se. Buzinemos em uníssono.


O Meu Gato

Sempre quis ter um gato. Desde que ouvi dizer que são os animais mais independentes que se pode ter. Queria um gato. Assim crescia eu e o gato, independentes um do outro. Nunca o tive. A minha mãe não deixou.
Descontente, dei as boas vindas ao Tico e ao Teco, os peixinhos dourados que substituíam o meu gato independente. Não gostei, não podia dar-lhes festinhas. Só tinha piada quando vinham buscar a comida. Quando podíamos contemplar o interior das bocas. E eu dava comida. E dava mais. E continuava a dar.Morreram passados 2 dias.
Mas também não era meus. Não os queria. Queria um gato.


Vieram a Tuga, a Tuguíssima e a Tuga, a Terceira. Exactamente nesta ordem. A primeira foi vítima do pé nº 38 da mulher-a-dias. Ela é que a pisou e eu é que levei um raspanete por deixar a tartaruga passear pela casa. Só queria deixá-la fazer um pouco de exercício. Estava sempre encurralada no aquário.

Mas não me importei. Não era minha. Eu queria um gato.

A segunda atirou-se do aquário (mistério que ainda persiste), logo no dia em que eu o deixei no parapeito para apanhar sol. Se vivêssemos no rés do chão, tínhamos evitado a poça verde no quintal da vizinha. Aliás, se fosse um gato tinha caído direito no chão, sem mazelas. Amuei quando tive de ir limpar os resíduos viscosos. Ela nem era minha.

A terceira hibernou durante ano e meio e a mãe decidiu atirá-la pela pia. Ainda hoje acho que havia uma hipótese de ser apenas um longo período de hibernação. Mas também não disse nada. Não me interessava.

- Quando tiveres a tua casa, escolhes o animal que quiseres. – diziam-me constantemente. E assim esperei. Passei da infância para a puberdade. Entrei no curso técnico para assistente de consultórios dentários. E comecei a trabalhar com a Dra. Jossara Violão.

Estava contente. Parecia ter escolhido a profissão certa. No início escolhi o curso por me parecer um bom sítio para trabalhar. Onde as pessoas pouco podiam reclamar, por estarem sempre de boca aberta. E até se ganhava bem.
Mas agora transportava-me um pouco à minha infância. Sorria por debaixo da máscara, sempre que me lembrava do Tico e do Teco. E tinha de combater a vontade de atirar comida para dentro das bocas dos pacientes.

Fui poupando e finalmente comprei uma casa só para mim. Era minha. Agora sim queria e tinha escolha própria. Já ninguém me proibia de nada. Fui ao shopping e comprei um gato. Era preto, com olhos verdes e um sorriso nos lábios. Era meu. E não importava se era apenas uma imagem estampada num porta-chaves. Era um gato e era independente. Tal como eu!


Ana Rosa - Roxanne

O creme hidratava o ar do quarto com cheiro a baunilha.Ana Rosa esticava delicadamente as meias de rede. Pretas com brilhantes. De perna erguida, sentada na cama recordava – os faróis dos clientes que acendiam as lantejoulas e o desejo. No fundo até gostava da atenção.

As suas pernas esguias faziam sucesso todas as noites.Entretia-se a escolher o batom que melhor combinava com a cor do seu vestido

“You don’t have to wear that dress tonight”

Ele não conseguia compreender. Uma mulher tem de fazer pela vida. Não conseguia aceitar a ideia de viver às custas de um homem. E arranjar um emprego medíocre a ganhar pouco, não era para ela. Era ambiciosa. Gostava de ir às compras na Avenida da Liberdade. Dos produtos de beleza. No fundo até gostava da atenção.
Dos olhares que a seguiam.

“So put away your makeup”

A sua mãe sempre lhe tinha dito – o que é bom é para se ver – e ela cumpria. Todas a noites mostrava o que tinha de melhor. E até gostava da atenção.

“I won't share you with another boy”

Mas para ele não. Não a queria partilhar. Logo ela, que era de ninguém.
Vinha com a conversa do Amor. – Amor? O que é isso? – Ana Rosa acedia-lhe ao pedido. Olhava-o nos olhos – no fundo, no fundinho – mas só via a auréola preta. Não via o Amor, nem Alma. Só preto. E o olhar dele seguia-a. Ela gostava, especialmente da atenção.

"You don't have to put on the red light”

Calçava as botas de salto. Estava pronta para mais uma noite de trabalho. Ou diversão. Tudo dependia da perspectiva. Já o tentara explicar-lhe, mas ele não ouvia. Não queria saber.

“You don't have to sell you body to the night”

Ana Rosa no fundo só gostava da atenção.


Partilhas

Tive uma infância que pode ser considerada normal. Quando dei por mim, já adolescente, debatia-me com a questão da liberdade. Parecia-me sempre estar preso. Sem possibilidade de escolher. Fui para o curso para seguir as pegadas do meu pai. Era católico sem ter escolhido sê-lo. Vestia o que me compravam. Somente ao almoço escolhia entre carne ou peixe. E se escolhesse salada saía mais caro.

A vida continuou. Depressa chegou o primeiro emprego e a escravidão diária da rotina.

Já com alguns anos de vida laboral, chegou mais um Natal. Como sempre, fomos todos convidados para a dita festa. E lá estava eu, preso, naquele mundo que não entendia. Naquele espaço, com aquelas pessoas, daquele emprego. Afastei-me. Fui para o canto mais recôndito da sala. No canto ninguém me olhava de trás. No canto estava seguro.De relance vi a Valéria. Encostada a um canto, tão perdida quanto eu. Não me recordo de ter ido ao seu encontro. Só sei que nas horas seguintes, pela primeira vez na minha vida, socializei.Socializei com alguém tão marginalizado como eu. Partilhámos estórias e cruzes. Eu e ela estávamos presos.

Último Quase

Assim que chegava ao carro, verificava sempre o bolso interior do casaco. O alto disforme confirmava. O anel estava lá. A rotina disfarçada permanecia. A quase aliança. A quase esperança. Os quase poemas inspirados.

Nesse dia, a neve na estrada rotineira obrigou-o a um rumo diferente. Acompanhava o rio. Parou o carro. Estava na beira da ponte. Não conseguia perceber porquê. Logo ele, que tinha vertigens. Olhou para o fluir da água e desejou fazer parte daquela força. Encolheu-se no casaco, mas a alma não aqueceu.

Inesperadamente o seu pé escorregou. Agarrou-se com toda a força à estrutura metálica. No peito sentia um bater desenfreado. Afinal ainda não estava pronto.

Começou como um esgar nos lábios e depressa se tornou num riso nervoso e contido. Riu alto. Riu muito. Há tanto tempo que não ria. Soube-lhe bem. O quase não era suficiente. Deu um berro. Deu outro. Berrou até ficar sem voz. As lágrimas que esperavam há muito, saíram. Os olhos cansados tinham, finalmente, paz e liberdade.

Levou a mão ao bolso perto do coração. E atirou o último quase ao rio.

Vento da Serra

Desde os 2 anos que a mãe lhe falava do bem que o ar da Serra fazia. Naquelas noites de Verão, nas histórias para dormir, havia sempre uma referência ao vento .

- Quando os 3 porquinhos pensavam que não havia nada que os salvasse do lobo mau, apareceu a fada madrinha. A fada chamou a força do vento da Serra, e o lobo mau voou.Amélia recordava essas noites. Do luar que passava pelas persianas amarelas semi cerradas. Em especial da brisa que corria, com cheiro a Verão.

Amanhã era o seu aniversário. A mãe ia levá-la à Serra . No fim de semana passado tinham ido aquela loja da cidade, onde se vendiam reliquias e velharias. Amélia tinha escolhido o frasco mais bonito da loja. Cabia na palma da mão. Transparente e com pequenas flores verdes e azuis.

Era a prenda que pedira. Ir a Serra e apanhar o vento.

Assim que saiu do carro, respirou fundo. Encheu os pulmões. Renovou os sonhos. Abriu o frasco e fechou-o o mais rápido que conseguiu.Tinha conseguido.

Com 5 anos acabados de fazer e era dona de um pedaço de vento. Tinha o mundo todo por conquistar e isto era apenas o início.

Pegou na caneta cor-de-rosa com brilhantes e escreveu no frasco – Vento da Serra – pôs na mesinha de cabeceira e ficou a olhar com um sorriso. Nessa noite adormeceu e sonhou com a festa dos 3 porquinhos e viu o lobo mau de paraquedas.


A Fita

- Tira-me isto. Rápido, tira-me isto – dizia enquanto tentava arrancar aquele pedaço de fita do tornozelo.
- Arranca. Puxa. Tira-me isto.
As lágrimas escorriam no seu rosto esguio e mulato. A amiga tentava ajudar, mas em vão .
Olga não queria mais aquela fita, com nós de promessas. Não queria nada que o recordasse. Promessas traidas.
- Com mais força. Desfaz. Tira-me isto, por favor. – Soluçava.
Já não havia esperança no verde da fita. O futuro já passara. Para avançar não podia haver recordações por perto. Seria demasiado. Doloroso.
Amanhã lembraria apenas a vontade de um último beijo. Beijo que nunca seria dado.
- Tira-me isto – continuava a dizer, enquanto a fita se soltava.

Dia de Mudança

Morro em doses suaves. Queixo-me e não mudo. Lentamente caio e o abismo aproxima-se. Vou viver e mudar. Deixar de lado os pontos nos is. Vou começar a ver tudo rosa no verde e não preto no branco. Começo hoje.


Ad Eternum

Eu mudo, tu mudas, eles mudam,
Nós não mudamos.

Muda o mundo, muda tudo,
Nós não mudamos.

Passam dias e anos.
Começamos a enrugar,
Não mudamos.

Acordamos, adormecemos.
Entrelaçamos as mãos.
Permanecem as rotinas.

Suspiramos e pensamos:
"Até quando?"